01 novembro 2013

Nem sequer faço ideia do motivo que trouxe de volta esse fragmento da minha história. Sabe quando a gente começa a pensar, pensar, pensar, e nosso pensamento vai fugindo, passeando por tantos lugares, e uma hora a gente se pega pensando em algo tão loooonge... que não dá nem pra saber como chegou até ali?
Então, é mais ou menos isso.
Lá, muitos anos atrás, muito antes de ter uma profissão, de acender à classe média, de sustentar os prórpios vícios e reclamar do aumento do IPTU? Então, foi nessa época.
Aquela que supostamente fui eu um dia, que não mais reconheço em mim, aquela que minhas memórias falham em lembrar. Então.
Mas vamos à história.
Sabe-se lá como aquela ficha de máquina de refrigerante veio parar na minha mão. Pela lógica devo ter achado, porque não tinha amigos pra me dar. Mas enfim. Tava lá aquela ficha. E tinha a Fernanda, amiga de escola nascida no mesmo dia um ano antes que eu. Depositária de tanta coisa, de tantos desejos e ... deixa pra lá que isso é outra história.
Acontece que quando vc mora na periferia de Taboão da Serra e tem uma ficha de máquina de refirgerante, isso é alguma coisa. Alguma coisa de um outro mundo, de pessoas que têm dinheiro pra comprar um refrigerante. Uma classe média inacessível (e eu tô ficando chata com essa filosofia barata antes de contar a história).
A Fernanda foi quem me disse que sabia onde tinha uma máquina de refrigerante. Era perto da escola que estudávamos, a melhor escola da cidade (uhu). Não sei em que tempo era, mas agora penso que deveria ser férias, porque resolvemos ir andando até lá pegar a Fanta. Dinheiro para o ônibus era impensável naquela época, assim como dinheiro pra Fanta. Só andando mesmo.
Mas a escola era longe. Nem lembro quanto, mas tinha umas duas enormes ladeiras e sei lá quantas descidas até chegar à BR (pela primeira vez penso em usar a tecnologia e o Google Maps aponta 10 Km, se é que coloquei o endereço certo) e da BR com certeza eram 2,5Km até a escola, pelo matagal que acompanha o acostamento.
Fomos andando, acostumadas a não pegar ônibus. Dividimos a Fanta, voltamos a pé.
Em casa, minha mãe percebeu os meus olhos vermelhos. Não, ela não perguntou. Não me deu o direito à dúvida mesmo tendo apenas 13 ou 14 anos. Ela afirmou que eu tinha fumado maconha.
Meus olhos vermelhos de fumaça de caminhão. De não ter nada pra fazer. De tantas expectativas e sonhos roubados. De desespero não olhado. Minha lembrança de tão pouco tempo antes de conhecer a Fernanda e o teatro jogada no sofá duas semanas sem comer. Apenas 3 kg imperceptíveis perdidos recuperados na primeira crise de TPM. Cartas escritas com sangue. Vontade de morrer. Criança perdida com corpo de mulher. Dor, dor, dor. E quando encontro algo pra me distrair e passar o tempo, olhos vermelhos de fumaça de caminhão. De não ter dinheiro pra condução e nem pra Fanta. A afirmação incisiva de que fumei maconha.
Algo ali dentro de mim disse forte: agora que eu vou fumar.
Mas eu, já naquele tempo racional e realista, já sabia não haver dinheiro ou canal para compra.
Nesse ponto minha memória de elefante me trai e não me lembro.
Nem sei se foi antes, ou depois ou se foi por isso. Seria uma boa história se fosse por isso, mas acho que não é.
Só sei que aquele baseado foi parar nas calças da minha boneca de porcelana. Sei que ganhei essa boneca no aniversário de quinze anos, acho que da Lina, mas enfim...
Tenho quase certeza de que quem me conseguiu o baseado foi a Fernanda, e acho (memória enevoada como um sonho) que inventei alguma história e ela, que estudava a noite, inventou uma história pra algum colega que deu o baseado. Mas minha memória fica clara que quem deu pra ela o baseado disse a frase: olha como é cheiroso.
Um suposto bom baseado. Anos depois descobri que era uma perninha de grilo.
Mas estava ali, a infração, o crime, a droga. O baseado que nunca mais teria dinheiro pra comprar. Um presente. Meu tesouro.
Guardei por meses nas calças da minha boneca. Às vezes tirava pra sentir o cheiro e devolvia. Nem fazia ideia de que secaria com o tempo, de que estragaria. Será que cheguei a acender?
Como será que joguei fora? Por que? E a boneca, que fim teve?
De primeiro barato me lembro apenas de quando finalmente consegui tragar um cigarro sem que a fumaça escapasse pelo nariz. De me deitar na laje, escondida, tragando o cigarro e sentindo a tontura, a sensação de voar. A tremedeira que dava. A sensação de coisa errada, o prazer, a vontade de ir ao banheiro depois. O medo de ser descoberta. Sozinha. Não compartilhei com ninguém essas viagens.
Demorei muito a contar pros amigos que fumava.
Os maços que comprava, fumava e jogava fora, por não poder guardar em casa.
A tristeza dura de inverno, aquela melancolia funda que dava quando os dias se tornavam cinzas e eu com um cigarro ou dois, andando, andando, deambulando, longe de qualquer pessoa conhecida e acendia meu cigarro. O alívio louco, o choro que sumia e a depressão que passava com as loucas tragadas. O melhor amigo que já tive. O colo quentinho, aquele que nunca me traiu, em quem podia confiar. A tristeza sumindo igual a agonia quando a gente faz xixi e passa a vontade.
Ainda hoje, tantas drogas depois a maconha não me apetece.