19 janeiro 2007

Da morte, do amor e da vida...

Cena 1 (encontro): Domingo, pouco depois das 23:30hs

- ô, isso é tudo seu? Me dá um pouquinho?
A referência ao meu decote não me incomoda, eu o abraço fortemente e, como em quase todas as vezes que o encontrei nos últimos dez anos, perguntei do seu primo. Trabalhando à noite, faz tempo que não aparece.
Não paro muito tempo pra conversar, até gostaria, mas minha prima está com pressa e vai embora com um ar de provocação. Como sempre, tudo acaba virando piada.
Na volta ainda conversamos um pouco, ele brinca com as crianças e entramos. Está tarde. Quase o chamei pra entrar e tomar alguma coisa. Insisto em dizer tchau, ele mal responde, diz que vai colocar uma blusa e já volta.
Ele não voltou.



Cena 2 (a notícia): Terça-feira ao meio-dia

- Claudia, você não tem terapia hoje?
-Que horas são?
- Meio-dia.
- Já vou levantar.
- Acabaram de me contar que o Gilbertinho morreu.
- Mentira.
- Não é mentira.
- Mataram?
- Não, foi acidente de carro, morreu ele e mais dois primos.
- O Claudinho estava junto?
- Não, foi o...

(ele nunca mais voltou)
Mais tarde fico sabendo do que realmente houve. Amigos que, em pleno mês de janeiro, resolveram passear na praia. Seis pessoas dentro de um carro. Três da mesma família, primos. Um amigo da rua de trás e mais duas meninas que moravam na praia, uma delas grávida. Uma carro que entra em uma ponte. O motorista da carreta viu o carro na contramão, tentou frear. O carro não desviou e entrou embaixo da carreta. Segundo o motorista, assim que desceu e foi ver as pessoas no carro já haviam cinco mortos e apenas um menino de 17 anos gemendo no banco de trás. Ainda existe o risco de aquela família perder mais um de seus membros.




Cena 3 (corpo): terça-feira, 13:00hs

Um carro parado no sinal, um beijo, conversas esparsas. Um corpo que se descobre ainda capaz de desejar. Corpos que se desejam. Cabeças que tentam negar a dor e a própria morte. A morte de si, a morte dele. É impossível acreditar que ele esteja morto.
Como pode uma pessoa conversar comigo em um dia e no dia seguinte simplesmente não existir mais?




Cena 4 (o horror): madrugada de terça para quarta-feira

Depois dos piores boatos possíveis que falavam de mutilação, pedaços de corpos e coisas assim, finalmente chego ao velório. O corpo do meu amigo já estava lá. O do primo dele ainda não tinha chegado.
Caixão lacrado, ordens explícitas para não abrir. Três fotos foram colocadas em cima do caixão. Ainda não consigo acreditar que o corpo do meu amigo esteja ali dentro. Simplesmente não consigo. Minha mente começa a esvaziar, a fugir ao controle de minha vontade. Naõ consigo mais pensar. Por mais que eu queira, não consigo imaginar que o Gilbertinho esteja morto. O pensamento foje, se concentra em outras coisas. Se insisto, emudeço até a alma.
Um carro funerário chega, é o corpo do primo do meu amigo. Os homens carregam rápido o caixão pesado, colocam sobre a pedra e... abrem o caixão, pra surpresa de todos. Gritos, gemidos, muitos desmaios. Me desespero com tanta dor. Mas meus olhos estão secos.


Esse evento levou ao desespero da mãe de meu amigo, que desejava de qualquer forma tocar pela última vez em seu filho. Acho que, como eu, ela também não conseguia acreditar que ele estava morto. Providências foram tomadas para que o caixão fosse aberto (mas pretendo poupar os leitores mais delicados do que houve, de todo o horror que presenciei, e também do terrível descaso que as empressas funerárias têm com a dor e o sofrimento das famílias que perderam um de seus membros, a despeito da fortuna escabrosa que cobram; acredito que, se houver céu e inferno, a eternidade é pouca para castigar os donos de funerárias).
Pude ver o rosto do meu amigo pela última vez, mas não pude acreditar. Naquele momento minha alma entrou no mais absoluto silêncio. Vez ou outra algum pensamento passava pela minha cabeça, mas eu não conseguia ouvir.
Emudeci tão completamente que deixei de sentir.
Não chorei, nem mesmo a noite da cama, nem mesmo quando fiquei sozinha.
Meus olhos estão secos, meu coração está seco.




Cena 5 (a fuga, o nada): quarta-feira, 6:00hs

- vamos embora?
- Vamos

Despedidas, menos de minha parte, que há tanto tempo não moro mais naquela rua e que agora me sinto uma estranha.
Me despeço do Claudinho, me despeço da mãe do Claudinho.

- Eu não ia aguentar ver o enterro.
- Nem eu.
- As pessoas vão entrar em um desespero enorme, já cheguei no meu limite.

Eu não ia aguentar ver o enterro, apesar de estar com os olhos secos e o coração seco, eu sentia como se aqueles gritos, gemidos e desmaios me cortassem. Como dez mil facas atingindo meu corpo.
Não é porque o corpo está anestesiado que ele deixa de ter a consciência de estar sendo mutilado.
Eu estava no meu limite.




Cena 6 (ressaca): quarta-feira por toda a tarde.

Minha prima no sofá, eu no colchão. Não conseguimos nos levantar, mal nos mexemos. Até tentamos conversar algumas vezes, em vão.




Cena 7 (fogo): quinta-feira, por toda a tarde.

Diálogos que giram em torno do desejo pelo Claudinho, que várias vezes durante o velório mandou beijos, que participou (ou melhor, foi o centro) de uma boa conversa sobre experiências passados, que me beijou e acordou meu dragão adormecido.
Diálogos que giram em torno de sexo, de prazer, de entrega, de corpos e de tudo que já não consigo mais.
Diálogos que giram em torno de um tempo em que o sexo era uma grande brincadeira pura e deliciosa. Era. Não é mais.
Fim de papo.




Cena 8 (final): madrugada de sexta-feira, 1:00 a.m.

Deitada na cama e repensando em tudo o que aconteceu nos últimos dias eu descubro duas coisas:
1) Eu tenho medo da morte
2) O único medo maior do que meu medo da morte é o meu medo da vida e do amor
.

4 Comments:

Blogger Homem Azul said...

Eu também tenho medo da morte. Por mais que às vezes eu a deseje, para que possa me libertar... por mais que eu queira sumir... tenho medo da morte. A sensação da negação do nosso próprio Eu é algo absurdo. Já me senti morrendo e garanto que não é bom... já senti que ia morrer (duas vezes, num hospital).
Imagino o quanto deva ser difícil perder um amigo. Eu mesmo perdi mais que uma amiga a pouco mais de um ano. Eu conversei por telefone com ela na sexta; ela morre no domingo. Na segunda eu recebo uma carta dela. Já recebeu carta de pessoas mortas? Horrível! Ela havia escrito numa quinta-feira e parecia estar tão bem...
Perdi também dois amigos de infância; um deles foi num acidente de carro. Numa noite chuvosa ele bateu o veículo num poste. O outro foi morto pela polícia num tiroteiro, pois havia se tornado um traficante da área.

E a vida é assim mesmo. Podemos morrer a qualquer instante, que controle temos sobre o nosso destino?

Tente não temer a morte, pois ela virá. E tente também amar. Sei que ambas as coisas são dificéis (para mim soa como algo quase inverossímil), mas, viver sem medo de morrer e amando é melhor. Espero um dia ser assim.

Desejo-lhe tudo de bom.

22:02  
Blogger Suicida said...

Eu emudeci e congelei lendo o que vc escreveu. Acho que bem de longe senti a sua dor. Lembrei da minha avó, que passou a manhã toda conversando comigo e à noite, de repente, morreu. Também fiquei seca, não conseguia chorar, mas meu corpo estava desfalecido. A morte é mesmo terrível, mas não podemos temê-las, ela virá com certeza, mas nós nunca vamos nos acostumar com ela.
Se eu pudesse te dava um abraço, mas só posso dizer que sinto muito...É tão terrível que nenhuma palavra fará qualquer mudança. Porém vou acrescentar que sofra o tempo que for necessário, vc não deve tentar não sentir, sinta, lembre, lembre e sorria, ele foi valioso. Deixa que o tempo se encarrega de consolar você e te mostrar de novo o amor. Beijos.

01:54  
Blogger Suicida said...

Feliz aniversário?!?!

13:37  
Blogger Suicida said...

Feliz aniversário?!?!

13:37  

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